Autopsicografia
(Fernando Pessoa)
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
(Escrito em: 27/11/1930)
Ao grande poeta lusitano
Caro poeta,
Como admirador seu de há muito, ousei responder a tão magnífica récita, completando sua ideia.
Esse fingir,
E arrebatar-se no pensamento
Não é senão um lamento,
Daquilo que realmente arde por dentro:
O mais profundo descontentamento.
Descontente, ele cria
E remonta,
E apronta
O que antes já era criado,
Mas não percebido, degustado.
Na dor nasce a mais autêntica inspiração,
Seu refúgio salutar
Do não poder amar
É entreter o mais belo coração.
Oh, triste, triste é alguém
Que do amor nada restou
Que a alegria, a vida o tempo levou.
Lamento, lamento profundo
Que rasga o coração
Maltrata o ser
Num triste viver.
E o poeta segue
Com sua matéria-prima
Busca cor, busca rima
Incomodado, descontente
Com o que carrega na mente.
O papel é sua catarse
A pena sua amiga
Do leitor contentar-se
Na esperança ele briga.
(Lobo Nobre – 30/03/2011)